Divagações: Que Horas Ela Volta?

No Brasil, existe uma geração (talvez mais de uma) que não foi criada por seus pais, mas por vizinhos, avós, amigos da família, babás, pr...

No Brasil, existe uma geração (talvez mais de uma) que não foi criada por seus pais, mas por vizinhos, avós, amigos da família, babás, professoras... Enquanto se discute o que é ou o que deixa de ser família nas esferas políticas, essa estrutura já está abalada há muito tempo – e muito provavelmente também na casa de quem está ditando regras sobre a família dos outros.

Que Horas Ela Volta?, em essência, é um filme sobre essa geração, ou sobre os pais dessa geração. Val (Regina Casé) é mais uma nordestina tentando a vida em São Paulo. Ela trabalha em uma casa de família como babá, cozinheira e faxineira, morando em um quartinho nos fundos. Também cria o menino da casa, Fabinho (Audrey Lima Lopes/Michel Joelsas), ao mesmo tempo em que sua filha, Jéssica (Camila Márdila), cresce sem mãe no Recife. Seus chefes, Bárbara e Carlos (Karine Teles e Lourenço Mutarelli), são educados e respeitosos, sabem do papel que ela desempenha no equilíbrio familiar, mas também fazem questão de ‘manter a hierarquia’ dentro de casa.

Tudo parece bem, mas a ‘harmonia’ do lar é ameaçada quando Jéssica decide ir para São Paulo prestar vestibular. A presença de uma menina jovem, bonita e curiosa desperta a atenção dos machos da casa, evidencia preconceitos, expõe feridas. Quem mais sofre são as mães. Val sente seu emprego ameaçado, teme pelo futuro da filha e não entende a luta da moça. Bárbara sente seu casamento ameaçado, teme pelo amor do filho e não entende como perdeu o controle da situação. Infelizmente, apenas uma delas vai crescer nessa trajetória.

Embora esteja disponível em poucas salas de cinema, Que Horas Ela Volta? merece ser procurado pelo público. Repleto de nuances, o filme apresenta um roteiro delicado, mas pungente. Na maioria das vezes, a mensagem nem precisa aparecer no texto, ficando bem clara nos enquadramentos e movimentos de câmera (destaco, aqui, a fantástica cena em que Jéssica é apresentada à piscina da casa). Ou seja, só elogios para o trabalho da diretora e roteirista Anna Muylaert.

O filme, obviamente, não teria funcionado se a qualidade técnica não fosse combinada com a fantástica expressividade dos atores. Nesse caso, destaco especialmente Regina Casé (impecável), Lourenço Mutarelli (que me surpreendeu bastante) e Camila Márdila (no ponto). Eles foram essenciais para acrescentar novas camadas de significado e dramaticidade a toda a trama.

Por mais que a figura da empregada que dorme na casa dos patrões não seja mais tão comum quanto há alguns anos, Que Horas Ela Volta? é um retrato da cultura brasileira. Não há, de forma alguma, ressentimento ou vergonha no comportamento da personagem de Regina Casé. Ela tem orgulho de seu trabalho bem feito e de se manter ‘em seu lugar’. A lógica da família com quem convive também funciona para ela, que nem reclama quando sua filha é chamada de ‘estranha’ e, inclusive, repreende a menina por questionar (ou até desafiar) comportamentos preestabelecidos.

E para não dizer que essa resenha é composta apenas por elogios, vou citar alguns fatos. Além de ter sido escolhido para representar o Brasil na próxima edição do Oscar (o que não é garantia de uma indicação), Que Horas Ela Volta? já recebeu prêmios em diversos festivais de cinema pelo mundo, incluindo Berlim, RiverRun (que acontece em Winston-Salem, nos Estados Unidos), Sundance e Amsterdam. A apreciação internacional é atestado de qualidade?

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